2006-02-24

LITERATURA - Brilhava

Os dedos percorreram as rugas da face como se elas fossem suaves linhas de mel, não marcas de pretéritos difíceis mas prendas para um futuro guloso colher. Nos olhos lia-se uma ternura triste, que escorria e compunha os lábios num brilho intenso, ávidos dum espelho que não os via.

Saiu para a rua e procurou sinais nos rostos que se cruzavam, o espelho, o brilho, fez os quarteirões do silêncio e atravessou as ruas do nada com as mãos nos bolsos do sobretudo, alforge de dedos lambuzados de vazio. Crispados em punhos que se cerravam, arbítrio que não se lia nem adivinhava nas rugas que poderiam ter sido rios de mel e agora eram vales de solidão, tanta.

Dos que viram o salto ninguém falou das rugas ou do brilho, de mel ou de ternura. Nem de nada em especial pois até o sobretudo era banal. Também eles não viram sinais. Quando os bombeiros encontraram o corpo tinha as mãos nos bolsos, manequim de vida vergado, caído sem que um espelho o tivesse reflectido. Brilhava.

Autoria: Carlos Gil

LITERATURA - Patine urbana

Se eu fosse um edifício teria beirais de telhado onde se aninhasse um pássaro, paredes com azulejos verde-claro com simétricas flores brancas e uma porta com o número carcomido pelas nuvens que a olharam e nela batido; com uma ranhura em metal polido onde estava a esperança assim escrita: “cartas”. Uma varanda fronteira, onde caía o Sol que dava brilho às fissuras, essas rugas de envelhecer olhando a cidade. E tinha um gradeado rendilhado ao seu longo como já não se fabrica, pois já não há tempo para fazer o individual; com arabescos de artesão nas portadas das janelas, a tinta estalada em bonitos desenhos de idade. Se eu fosse um edifício eu gostava de ser um edifício amigável, o cinzento de prata da bonita meia-idade nas paredes que viam a rua viver.

Quem olhasse adivinhava uma cave onde estariam guardadas as plantas da sua criação e as cotas da sua genética, e entrever-se-iam águas-furtadas donde se avistavam montes e se serviam longos pôr-do-sol. E via uma chaminé a precisar de ser pintada, uma telha partida... é impossível abdicar de, se fosse um edifício, ter uma telha partida que lave com o sol que se ri, e seca a chuva que caiu. Lá dentro adivinhar-se-iam cantos que são recantos, desenhados em mapas de tesouro e contados por avós pacientes com os netos de linhas uniformes, que crescem aqui e ali rua acima rua abaixo.

A história adivinhar-se-ia em azulejos rachados, na ternura da gravação dum coração e uma seta, quatro iniciais, uma data. Tanto que há numa parede antiga e tão ilegível que é para quem não olhar, olhando-se olhando. As veias à vista dum edifício são indispensáveis para quem passa em frente, bata ou não bata à porta alta e em madeira, pequenas janelas gradeadas e de vitrais antigos. Por falar em frente: o passeio defronte, estreito e tornando os passantes íntimos com a frontaria, seria de seixos gastos pela idade e que brilhariam ao sóis das tardes. Não seria numa esquina pejada de sinais de trânsito porque o edifico que eu seria, se fosse edifício, não teria no seu telhado o néon assassino da sua existência, ou as linhas vampes de assinatura de época, em postais ilustrados que perturbam o sossego de olhar a rua e viver. Os azulejos antigos e as cornijas em pedra velha seriam os seus sinais, únicos códigos legíveis e que se aprendem em olhares que sabem mais que só ler, sabem olhar.

Se eu fosse um edifício seria velho e amigável para quem passasse e me olhasse. Sem alarmes ou placas no portão a ameaçar com seres ferozes ou multas. E teria uma fachada ainda mais linda se nela houvesse candeeiros para iluminação do passeio, daqueles antigos e que nas noites de névoa fariam imaginar no meu passado mil e tantos passos à sua frente, épocas que o esmalte dos azulejos reflectiu quando brilhava após lavado pela chuva, esse húmus da rua. Se eu fosse um edifício, queria ser mais velho e mais bonito que o sou, humano, daqueles em que a sua existência na paisagem é tão naturalmente bela que nos sentimos pequeninos, olhando-os. A patine da beleza dumas linhas com vida vivida e uma história antiga e que será eterna: na sua ausência continuam a falar quando percorremos ruas onde o contraste de épocas asfixia as mais antigas, raramente em benefício de passeios onde, também, os seixos resistem com as fachadas ao permanente destruir de paisagem.

Autoria: Carlos Gil