2006-02-24

LITERATURA - Patine urbana

Se eu fosse um edifício teria beirais de telhado onde se aninhasse um pássaro, paredes com azulejos verde-claro com simétricas flores brancas e uma porta com o número carcomido pelas nuvens que a olharam e nela batido; com uma ranhura em metal polido onde estava a esperança assim escrita: “cartas”. Uma varanda fronteira, onde caía o Sol que dava brilho às fissuras, essas rugas de envelhecer olhando a cidade. E tinha um gradeado rendilhado ao seu longo como já não se fabrica, pois já não há tempo para fazer o individual; com arabescos de artesão nas portadas das janelas, a tinta estalada em bonitos desenhos de idade. Se eu fosse um edifício eu gostava de ser um edifício amigável, o cinzento de prata da bonita meia-idade nas paredes que viam a rua viver.

Quem olhasse adivinhava uma cave onde estariam guardadas as plantas da sua criação e as cotas da sua genética, e entrever-se-iam águas-furtadas donde se avistavam montes e se serviam longos pôr-do-sol. E via uma chaminé a precisar de ser pintada, uma telha partida... é impossível abdicar de, se fosse um edifício, ter uma telha partida que lave com o sol que se ri, e seca a chuva que caiu. Lá dentro adivinhar-se-iam cantos que são recantos, desenhados em mapas de tesouro e contados por avós pacientes com os netos de linhas uniformes, que crescem aqui e ali rua acima rua abaixo.

A história adivinhar-se-ia em azulejos rachados, na ternura da gravação dum coração e uma seta, quatro iniciais, uma data. Tanto que há numa parede antiga e tão ilegível que é para quem não olhar, olhando-se olhando. As veias à vista dum edifício são indispensáveis para quem passa em frente, bata ou não bata à porta alta e em madeira, pequenas janelas gradeadas e de vitrais antigos. Por falar em frente: o passeio defronte, estreito e tornando os passantes íntimos com a frontaria, seria de seixos gastos pela idade e que brilhariam ao sóis das tardes. Não seria numa esquina pejada de sinais de trânsito porque o edifico que eu seria, se fosse edifício, não teria no seu telhado o néon assassino da sua existência, ou as linhas vampes de assinatura de época, em postais ilustrados que perturbam o sossego de olhar a rua e viver. Os azulejos antigos e as cornijas em pedra velha seriam os seus sinais, únicos códigos legíveis e que se aprendem em olhares que sabem mais que só ler, sabem olhar.

Se eu fosse um edifício seria velho e amigável para quem passasse e me olhasse. Sem alarmes ou placas no portão a ameaçar com seres ferozes ou multas. E teria uma fachada ainda mais linda se nela houvesse candeeiros para iluminação do passeio, daqueles antigos e que nas noites de névoa fariam imaginar no meu passado mil e tantos passos à sua frente, épocas que o esmalte dos azulejos reflectiu quando brilhava após lavado pela chuva, esse húmus da rua. Se eu fosse um edifício, queria ser mais velho e mais bonito que o sou, humano, daqueles em que a sua existência na paisagem é tão naturalmente bela que nos sentimos pequeninos, olhando-os. A patine da beleza dumas linhas com vida vivida e uma história antiga e que será eterna: na sua ausência continuam a falar quando percorremos ruas onde o contraste de épocas asfixia as mais antigas, raramente em benefício de passeios onde, também, os seixos resistem com as fachadas ao permanente destruir de paisagem.

Autoria: Carlos Gil